Nossa Senhora manteve o seu sim e convida-nos a ser leais
A fidelidade a uma pessoa, a um amor, a uma vocação, é um
caminho em que se alternam momentos de felicidade e períodos de escuridão e
dúvida. Nossa Senhora manteve o seu sim e convida-nos a ser leais, vendo a mão
de Deus também naquilo que não compreendemos.
Decorreram quarenta dias após o nascimento de Jesus, e a
Sagrada Família põe-se a caminho para cumprir o que está mandado pela Lei de
Moisés: todo varão primogênito será consagrado ao Senhor (Lc 2, 23). A
distância de Belém a Jerusalém não é muita, mas são necessárias várias horas
para percorrê-la a cavalo; uma vez na capital judaica, Maria e José dirigem-se
ao Templo. Antes de entrar, cumpririam com toda piedade os ritos de purificação;
também comprariam, em uma tenda próxima, a oferta prescrita aos pobres: um par
de rolas ou duas pombinhas. A seguir, através das portas de Hulda e dos
monumentais corredores subterrâneos por onde transitavam os peregrinos,
chegariam à grande explanada. Não é difícil imaginar a sua emoção e
recolhimento enquanto se encaminhavam para o átrio das mulheres.
Talvez neste momento teria se aproximado um homem idoso. Em
seu rosto reflete-se a satisfação. Simeão saúda com afeto a Maria e a José, e
manifesta a ansiedade com que esperava esse momento. É consciente de que seus
dias estão chegando ao fim, mas sabe também – o Espírito Santo revelou-lhe (Lc
2, 26) – que não morreria sem ver o Redentor do mundo. Ao vê-los entrar, Deus
fez-lhe reconhecer, nesse Menino, o Santo de Deus. Com o lógico cuidado que a
tenra idade de Jesus requeria, Simeão o toma em seus braços e eleva comovido a
sua oração: agora, Senhor, podes deixar teu servo ir em paz, segundo tua
palavra: porque meus olhos viram a tua salvação, a que preparastes ante a face
de todos os povos: luz para iluminar aos gentios e glória de teu povo Israel
(Lc 2, 29-32).
Ao final da sua prece, Simeão dirige-se especialmente a
Maria, introduzindo naquele ambiente de luz e alegria, um vislumbre de sombra.
Continua falando da Redenção, mas acrescenta que Jesus será sinal de
contradição, a fim de que se descubram os pensamentos de muitos corações, e diz
à Virgem: uma espada traspassará a tua alma (Lc 2, 34-35). É a primeira vez que
alguém fala desse modo.
Até esse momento, tudo - o anúncio do Arcanjo Gabriel, as
revelações a José, as palavras inspiradas da sua prima Isabel e as dos pastores
- tinha proclamado a alegria pelo nascimento de Jesus, Salvador do mundo.
Simeão profetiza que Maria levará em sua vida o destino do seu povo, e ocupará
um papel de primeira grandeza na salvação. Ela acompanhará o seu Filho,
colocando-se no centro da contradição, em que os corações dos homens se
manifestarão a favor ou contra Jesus.
Evidentemente, a Virgem Maria percebe que a profecia de
Simeão não desmente, mas completa tudo o que Deus lhe foi dando a conhecer
anteriormente. A sua atitude, nesse momento, será a mesma que as páginas do
Evangelho sublinham em outras ocasiões: Maria guardava todas estas coisas
meditando-as no seu coração (Lc 2, 19; cf. Lc 2, 51). A Virgem medita os
acontecimentos; busca neles a vontade de Deus, aprofunda nas inquietações que
Yahvé põe em sua alma e não cai na passividade perante o que acontece ao seu redor.
Esse é o caminho, como assinalava João Paulo II, para poder ser leais com o
Senhor: «Maria foi fiel antes de mais nada quando se pôs a buscar, com amor, o
sentido profundo do desígnio de Deus nela e para o mundo (...). Não haverá
fidelidade se não houver, na raiz, esta ardente, paciente e generosa busca; se
não se encontrasse no coração do homem uma pergunta, para a qual só Deus tem a
resposta, melhor dito, para a qual só Deus é a resposta» (João Paulo II,
Homilia na Catedral Metropolitana da Cidade do México, 26/01/1979).
Assista também: "Confiança Inabalável no Senhor",
com padre Roger Luís
Essa busca da vontade
divina leva Maria à acolhida, à aceitação do que descobre. Maria encontrará ao
longo de seus dias numerosas oportunidades para poder dizer «que se faça, estou
pronta, aceito» (ibid). Momentos cruciais para a fidelidade, nos quais
provavelmente advertiria que não era capaz de compreender a profundidade do
desígnio de Deus, nem como se levaria a termo; e no entanto, observando-os
atenciosamente aparecerá claramente o seu desejo de que se cumpra o querer
divino. São acontecimentos nos quais Maria aceita o mistério, encontrando-lhe
um lugar na sua alma «não com a resignação de alguém que capitula em frente a
um enigma, a um absurdo, senão com a disponibilidade de quem se abre para ser
habitado por algo –por Alguém!– maior que o próprio coração»(ibid).
Sob o olhar atento de Nossa Senhora, Jesus crescia em
sabedoria, em idade e em graça diante de Deus e dos homens (Lc 2, 52); quando
chegaram os anos da vida pública do Senhor, ia se dando conta de como se
realizava a profecia de Simeão: este será posto para ruína e ressurreição de
muitos em Israel, e para sinal de contradição (Lc 2, 34). Foram anos em que a
fidelidade de Maria se expressou no «viver de acordo com o que se crê. Ajustar
a própria vida ao objeto da própria adesão. Aceitar incompreensões,
perseguições antes que permitir rupturas entre o que se vive e o que se crê»;
anos de manifestar de mil modos o seu amor e lealdade a Jesus. Anos, enfim, de
coerência: «o núcleo mais íntimo da fidelidade». Mas toda fidelidade – como lhe
é própria – «deve passar pela prova mais exigente: a da duração», isto é, a da
constância. «É fácil ser coerente por um dia ou por alguns dias. Difícil e
importante é ser coerente por toda a vida. É fácil ser coerente na hora da
exaltação, difícil ser na hora da tribulação. E só pode se chamar fidelidade
uma coerência que dura ao longo de toda a vida» (João Paulo II, Homilia na
Catedral Metropolitana da Cidade do México, 26/01/1979).
Assim o fez Nossa Senhora: leal sempre, e mais ainda na hora
da tribulação. Encontra-se lá, no transe supremo da Cruz, acompanhada de um
reduzido grupo de mulheres e do Apóstolo João. A terra cobriu-se de trevas.
Jesus, fincado no madeiro, com uma imensa dor física e moral, lança ao céu uma
oração que reúne sofrimento pessoal e radical segurança no Pai: Eloí, Eloí,
lemá sabacthaní? –que significa: meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?
(Mc 15, 34). Assim começa o Salmo 22, que culmina em um ato de confiança:
lembrar-se-ão e converter-se-ão ao Senhor todos os confins da terra (Sl 22
(21), 28).
Quais seriam os pensamentos de Nossa Mãe ao escutar o grito
de seu Filho? Durante anos tinha meditado no que o Senhor esperava dela. Agora,
vendo o seu Filho sobre a Cruz, abandonado por quase todos, Nossa Senhora teria
presentes as palavras de Simeão: uma espada traspassava as suas entranhas.
Sofreria, de modo singular, a injustiça que se estava consumando. E, no
entanto, na escuridão da Cruz, sua fé lhe poria diante dos olhos a realidade do
Mistério: estava se realizando o resgate de todos os homens, de cada homem.
As palavras de Jesus, cheias de confiança, lhe fariam
entender com luzes novas que a sua própria aflição a associava mais intimamente
à Redenção. Do alto do patíbulo, no momento mesmo da sua morte, Jesus cruza o
olhar com o de sua Mãe. Encontra-a ao seu lado, em união de intenções e de
sacrifício. E assim, «o fiat de Maria na Anunciação encontra a sua plenitude no
fiat silencioso que repete ao pé da Cruz. Ser fiel é não trair, às escuras, o
que se aceitou em público» (João Paulo II, Homilia na Catedral Metropolitana da
Cidade do México, 26/01/1979).
Com a sua diária correspondência, a Virgem tinha-se
preparado para este instante. Sabia que, com a sua entrega incondicional no dia
da Anunciação, também tinha abraçado, de algum modo, estes acontecimentos nos
quais agora participa com plena liberdade interior. «A sua dor forma um todo
com a de seu Filho. É uma dor cheia de fé e de amor. A Virgem Maria no Calvário
participa da força salvífica da dor de Cristo, unindo seu fiat, seu sim, ao de
seu Filho» (Bento XVI, Discurso do Angelus, 17/09/2006). Maria permanece fiel,
e oferece a seu Filho um bálsamo de ternura, de união, de fidelidade; um sim à
vontade divina (Via Sacra, IV estação). E sob a proteção dessa fidelidade, o
Senhor coloca São João e, com ele, a Igreja de todos os tempos: aí tens a tua
mãe (Jo 19, 27).
J.J. Marcos
Fonte: Canção Nova